Irmãos submetidos a trabalho escravo por 20 anos serão indenizados

Submetidos a trabalho análogo à escravidão por mais de duas décadas numa fazenda em Pontal do Araguaia (a 510 km de Cuiabá), os irmãos Marinalva Santos e Maurozã Santos obtiveram na Justiça reparação financeira por meio de Ação Civil Pública (ACP) ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso (MPT-MT) contra Odete Maria da Silva e seus filhos Lucimar Justino da Silva e Vera Lúcia Justina Ataíde, proprietários da Fazenda Canoeiro.

Em 2021, com base nas provas reunidas em inquérito policial, o MPT ouviu os irmãos e os assistentes sociais envolvidos no resgate e ajuizou uma Ação Civil Pública (ACP) para pedir a condenação dos réus ao pagamento de indenizações por danos morais coletivos, danos materiais e danos morais individuais sofridos pelas vítimas, e para exigir o cumprimento de inúmeras obrigações, como o reconhecimento do vínculo de emprego rural de Maurozã e Marinalva (de 1998 a 2020) e de Rafael da Silva (de 2010 a 2020); a anotação da Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS); e o pagamento de todas as verbas trabalhistas e rescisórias devidas.

O MPT também requereu o pagamento de indenização por danos materiais a Marinalva, em valor correspondente a todos os seus Benefícios de Prestação Continuada (BPC) sacados e apropriados indevidamente de maio de 2000 a novembro de 2020.

“O descumprimento generalizado e continuado de direitos fundamentais dos trabalhadores previstos na Constituição e o desprezo absoluto a quaisquer normas de saúde e segurança do trabalho e, sobretudo, a indiferença a todas as regras trabalhistas de higiene e conforto, submetiam as vítimas a situação degradante e desumana de vida e labor. Não receber qualquer produto de higiene, fazer as necessidades fisiológicas no mato, tomar banho em lago ou represa, dormir em catres em casas imundas, passar fome a ponto de mendigar por comida com os vizinhos, sofrer sucessivos abusos de poder pela sonegação de salário e mediante violência física e psicológica, possivelmente sexual, todos esses comportamentos negam aos trabalhadores a dignidade inerente à sua condição humana. Na fazenda, os Santos não tinham bases mínimas para uma vida saudável, o que a condição de pessoa com deficiência dos irmãos torna ainda mais reprovável”, salientou o MPT na ação.

A Justiça do Trabalho chegou a conceder ao MPT uma liminar de tutela provisória de urgência de natureza cautelar, com o objetivo de indisponibilizar o patrimônio dos réus e resguardar os valores para a reparação devida. Em sede de tutela de direitos difusos e coletivos em sentido estrito, o Parquet pediu ao Juízo a declaração da submissão dos três trabalhadores à condição análoga à de escravo e a condenação da primeira e segunda rés (Odete e Vera) em obrigações de fazer, não fazer e pagar, com eficácia em todo o Estado de Mato Grosso, e fixação de multa.

“Quando atravessavam a porteira, os empregados se viam presos a um rincão reminiscente de um passado incivilizado, semifeudal, no qual o direito do trabalho não existia, em que a lei eram a palavra e a vontade do patrão; e onde o trabalhador, ao invés de sujeito de direitos, era só objeto: de boa-vontade, ou mais comumente, de abusos, invariavelmente à mercê dos caprichos do dono da terra. Se o direito do trabalho tem uma missão primordial, é a de enterrar esse entulho, confinando-o a um canto da história que só é revisitado para não ser esquecido e jamais repetido”.

Acordo

Após anos de tramitação na Justiça do Trabalho, as partes envolvidas chegaram a um acordo. A conciliação foi homologada em audiência realizada no dia 23 de outubro, na Vara do Trabalho de Barra do Garças.

Os exploradores deverão anotar a CTPS das vítimas – o período de 08/11/1998 a 03/03/2020, no caso de Marinalva e Maurozã; e o período de 21/12/2010 a 11/02/2020, no caso de Rafael –, na função de serviços gerais, com remuneração de um salário mínimo nacional. Também foi expedido alvará para liberação do seguro-desemprego.

Eles reconheceram a dispensa sem justa causa e comprometeram-se a cumprir todas as obrigações de fazer e de não fazer descritas na petição inicial, sob pena de multa.

Para pagamento da indenização dos direitos trabalhistas e dos danos causados aos trabalhadores, os réus concordaram em vender o equivalente a um alqueire de terras, no prazo de até 90 dias. Os termos da venda serão informados no processo, assim como a proposta de pagamento, tão logo tudo seja formalizado. Ao final dos 90 dias, caso não apareçam interessados na compra das terras, será realizada a penhora de um alqueire, o qual será vendido judicialmente. Do valor total obtido, 35% serão destinados à Marinalva, 35% a Maurozã e 15% a Rafael. Os outros 5% serão utilizados no pagamento dos recolhimentos previdenciários da contratualidade.

Com o depósito judicial dos valores obtidos com a venda, o Cras de Pontal do Araguaia será oficiado para que tome ciência e informe, no prazo de 15 dias, as contas bancárias dos resgatados ou dos seus representantes legais, para transferência dos valores.

A título de danos morais coletivos, serão destinadas mensalmente, pelo período de 12 meses, duas cestas básicas para a Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Isaías Pereira dos Santos, da cidade onde o resgate ocorreu. Para cada descumprimento, haverá aplicação de multa mensal, a ser revertida em favor da unidade escolar beneficiada.

Segundo a procuradora do Trabalho Helena Romera, houve dificuldade em realizar a conciliação pelo fato de os réus não possuírem bens a serem futuramente executados em eventual condenação, “pelo que considerei como razoável a proposta de acordo que contemplasse a assunção das obrigações de fazer e não fazer em caráter inibitório nos estritos termos da exordial e, quanto às verbas devidas aos trabalhadores, a reversão a eles do montante a ser obtido com a venda de um alqueire da propriedade”.

Quanto à indenização por dano moral coletivo, a proposta dos réus foi destinar a organizações da cidade do local do dano cestas básicas e/ou produtos advindos da horta da família.

“Apesar de ser proposta que destoa do pedido da exordial, diante dos contornos do caso concreto e da provável impossibilidade de êxito na execução do valor total caso haja condenação”, não houve alternativa de resolução a não ser a dada ao caso.

Assistência e acolhimento

O Cras retirou os irmãos Santos da Fazenda Canoeiro, providenciando-lhes moradia e documentação. Também recuperou o cartão do Benefício de Prestação Continuada (BPC) de Marinalva e, dada a sua inaptidão financeira, administrou-o por um tempo em benefício dela. Maurozã foi inscrito no Programa Bolsa Família. Ambos residiram por algum tempo em um imóvel providenciado pela Prefeitura Municipal de Pontal do Araguaia, no programa de aluguel social da Secretaria Municipal de Assistência Social, e recebiam visitas domiciliares semanais da equipe multiprofissional do Cras.

Após o resgate, verificou-se a necessidade de encaminhá-los para avaliação médica com oftalmologista, psiquiatra, dentista, psicóloga, dentre outros. Foram solicitados diversos exames e Marinalva foi submetida a uma cirurgia no olho. Dentro da programação do Cras, eles participaram de eventos para que pudessem iniciar um convívio social saudável, apresentando boa receptividade. Infelizmente, atitudes específicas demonstravam nitidamente os reflexos de anos de isolamento social. Também houve preparação emocional e física para que pudessem se manter com certa autonomia.

Como antes faziam as necessidades fisiológicas no mato e tomavam banho em uma represa, a assistente social conta que tiveram dificuldade em aprender a usar o banheiro da casa disponibilizada pela prefeitura, assim como produtos básicos de higiene, como sabonete.

O caso

Após denúncia recebida em dezembro de 2019 pelo Centro de Referência da Assistência Social (Cras) de Pontal do Araguaia, Marinalva e Maurozã, 43 e 49 anos à época, foram encontrados trabalhando “descalços, com as roupas sujas e mau odor”. Ambos eram encarregados de serviços gerais, como a manutenção da horta, da represa e dos animais da propriedade.

As condições de trabalho e de vida no local eram de tal modo precárias que, após primeira visita feita, os profissionais do Cras retornaram à fazenda com o apoio da Polícia Militar, conduzindo os envolvidos à Delegacia de Polícia Federal, a fim de que prestassem depoimento.

A violência física fazia parte da rotina de ambos os irmãos. Marinalva relata ter sofrido agressões contínuas, mencionando o uso de pedaços de pau e facão. Ela também teria sido vítima de abuso sexual. Em resposta à equipe do Cras, afirmou que “homens já fizeram coisas que ela não queria”.

Há, ainda, relato de ao menos um episódio grave de violência contra Maurozã, que, motivado por fome extrema, “furtou” uma galinha. Uma vez descoberto, foi levado pelo filho da ré para um brejo, onde apanhou pelo ocorrido. Ele acrescentou que, na ocasião, o agressor possuía uma arma de fogo em punho.

A equipe do Cras ressaltou que o tratamento dispensado aos irmãos Santos era brutal. “Devido aos sofrimentos pelos quais passaram, eles tiveram danos psicológicos, não lembrando de sua data de nascimento, idade e nome de pessoas próximas. Quando a Sra. Odete [se] aproximou dos mesmos, eles pediram para finalizar a conversa, nitidamente amedrontados”, lembra a assistente social Kelly Cristina Pereira.

No momento do resgate, ao serem questionados se tinham se alimentado naquele dia, as vítimas responderam que haviam comido arroz com soro de leite.

Odete da Silva e sua filha Vera Lúcia entraram por diversas vezes em contradição quanto ao tempo em que os irmãos moraram na fazenda, valores recebidos e se os documentos pessoais de ambos estavam ou não em sua posse. Elas também rechaçaram todas as acusações de maus tratos e condições degradantes de trabalho que lhe foram imputadas e afirmaram que tinham com os irmãos Santos uma relação de natureza familiar.

Na ação, o MPT contestou todas as alegações e salientou que a relação abusiva mantida era patronal.

“A relação de trabalho rural, jamais formalizada, dos irmãos Santos com as rés era pessoal (tanto que eles não podiam deixar a fazenda), subordinada, não voluntária e sem qualquer teor associativo, filantrópico, terapêutico ou cooperativo que desnaturasse a sua natureza contraprestativa, tanto que ao Cras e à Polícia Federal, a primeira ré, Odete Maria da Silva, disse que remunerava os irmãos pelo serviço prestado. Ademais, o caráter violento, exploratório e desumano do tratamento dispensado pelas rés a Marinalva e Maurozã é incompatível com o cariz familiar que atribuem à sua relação com eles. Aproveitavam-se de sua vulnerabilidade para vilipendiar-lhes a dignidade”, escreveu o procurador do Trabalho Állysson Feitosa Torquato Scorsafava na petição inicial.

Em maio de 2000, Marinalva passou a receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC), cujo cartão e senha ficavam sob a guarda dos exploradores. O valor era administrado pelo grupo familiar, sendo sonegado à Marinalva. Sobre o fato, o procurador asseverou: “Elas exploravam-lhes o trabalho e, no caso do BPC [Bolsa Família] de Marinalva, o nome”.

As normas trabalhistas eram sistemática e generalizadamente desrespeitadas nas relações de trabalho na Fazenda Canoeiro. Os irmãos moravam em uma casa em péssimas condições de higiene, não recebiam roupas de corpo ou de cama, Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), folga ou salário. Marinalva relata que já havia tentado sair da fazenda, mas retornou para a propriedade por não ter condições de se manter, complementando que as refeições realizadas eram raras e consistiam basicamente em “pão e bolo”.

De acordo com a equipe de assistência social, eles sequer sabiam “lidar” com dinheiro.

“Causa ainda mais revolta saber que são pessoas com deficiência de natureza intelectual, possivelmente agravada pelo isolamento e brutalidade a que foram submetidas por décadas, dificultando ainda mais a sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”, sintetizou o procurador do Trabalho.

Nos depoimentos prestados ao MPT, Maurozã afirmou trabalhar todos os dias da semana, inclusive aos domingos. Como não havia banheiro no local em que ficavam alojados e não recebiam qualquer produto de higiene, era necessário ir “até o mato” para realizar as necessidades fisiológicas. O local não era limpo com frequência e as vítimas tomavam banho na represa da propriedade.

O filho de Marinalva, Rafael dos Santos, foi a terceira vítima de anos de submissão ao trabalho análogo ao de escravo. O resgate dele ocorreu pouco tempo depois, em janeiro de 2020. Da mesma forma que a mãe e o tio, laborava na Fazenda Canoeiro recebendo ordens da ré, a quem chamava de “vó”. Em suas palavras, “desde sempre se lembrava de ter trabalhado naquela fazenda, inclusive aos domingos, quando levava dona Odete para a feira em Pontal, dirigindo a caminhonete, mesmo sem CNH, e nunca havia tirado férias”. (Com informações da Assessoria do MPT-MT).

Fonte: Ponto na Curva

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