Mulheres do campo superam preconceitos e quebram paradigmas em Mato Grosso

No campo, elas representam mais de 40% da mão de obra agrícola nos países em desenvolvimento, de acordo com os dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Não é à toa que, cada vez mais, elas ocupam cargos estratégicos na agricultura familiar, na pecuária e no extrativismo.

Veridiana Vieira, 40 anos, que é presidenta de uma associação nacionalmente conhecida pela venda de castanhas do Brasil e de Rochelle Beltramin, 39, que se tornou uma fazendeira de sucesso no ramo da pecuária de corte.

Um espírito inquieto

Desde muito jovem, Veridiana sempre foi inconformada com as condições precárias em que se encontravam muitos agricultores e agricultoras familiares na pequena cidade de Cotriguaçu, região amazônica ao Noroeste de Mato Grosso, a 952 quilômetros da capital Cuiabá. Da infância, lembra do pai percorrendo distâncias de 20 quilômetros do sítio até a cidade para entregar frutas e hortaliças. “Era uma vida muito sofrida. Pensava comigo: por que a agricultura familiar não consegue ter melhores condições? Por que a gente não consegue gerar uma boa renda?”, questionava-se.

Essa inquietude sempre acompanhou Veridiana e foi muito importante para a fundação da Associação de Coletores e Coletoras de Castanha do Brasil do PA Juruena (ACCPAJ). Se hoje a associação é referência em extrativismo florestal não madeireiro no Brasil, com potencial de produção de mais de 280 mil quilos de castanha, muito se deve ao pioneirismo de Veridiana, que foi a primeira coletora da ACCPAJ.

Hoje o caminho está aberto. Muitas mulheres são coletoras ou compõem a diretoria da associação. Mas nem sempre foi assim: “os coletores diziam que as mulheres no mato só iriam atrapalhar a coleta. Com muita insistência e diálogo, nós provamos o contrário, que com o casal na floresta a produção rende muito mais. Que as mulheres são aplicadas, disciplinadas e podem ser excelentes coletoras, tanto quanto os homens”, conta.

“Muitas mulheres aprenderam o ofício e hoje adentram na floresta amazônica para coletar as castanhas, que caem do pé e ficam espalhadas pela mata.  As amêndoas estão protegidas por uma casca muito dura, que a gente chama de ouriço. Para acessá-las é preciso romper essa proteção. Então, nós utilizamos facões para quebrar o ouriço, e só assim, finalmente coletar as castanhas. É um trabalho pesado, que envolve força braçal, mas também muita técnica. Ao longo dos últimos anos, mostramos que somos muito boas nisso”, garante.

Caso de sucesso

Veridiana sempre esteve à frente no processo de constituição da ACCPAJ. Em 2006, ela já fazia parte do grupo de 8 pessoas que um dia ousou em fazer extrativismo sustentável em uma das regiões da Amazônia que mais sofre pressão por desmatamento.

A associação foi formalizada em 2012 e o pequeno grupo se transformou em 39 famílias, que hoje fazem a coleta das amêndoas no interior das fazendas parceiras da ACCPAJ. As castanhas são colhidas de maneira individual, por cada família, e encaminhadas para o barracão de beneficiamento da associação. Já a venda do produto é coletiva, por meio de leilões, cujas remessas variam de 60 mil a 80 mil quilos de castanha. É um evento que sempre gera grandes expectativas nos compradores nacionais e até do exterior.

Financiamento

Para coroar o trabalho, no ano passado às coletoras e coletores do Juruena tiveram seu primeiro projeto de financiamento de produção sustentável aprovado, enquanto associação constituída. Trata-se do projeto ‘Cutiando – castanha e sustentabilidade na região noroeste de  Mato Grosso’, aprovado por meio do edital de chamadas do Programa REM MT. Veridiana comanda o trabalho dos coletores em busca das castanhas pela floresta amazônica.

O Cutiando é financiado pelo REM com objetivo de fortalecer ainda mais a associação com a compra de uma série de máquinas – a exemplo da autoclave, secadores e peneirão para a pré-limpeza das amêndoas – que irão agregar ainda mais valor ao produto da ACCPAJ.

O projeto ajudará no aumento exponencial do valor do quilo da castanha, que atualmente é comercializado entre 6 e 8 reais pela associação. Com o produto industrializado pelos próprios coletores e coletoras, a amêndoa será comercializada na faixa dos 30 a 50 reais o quilo. Em algumas situações, dependendo da safra, esse valor pode chegar a 150 reais. “Essa é uma das grandes realizações da associação. Com esse projeto, iremos potencializar e agregar valor ao nosso produto”, comemora Veridiana.

Referência na pecuária de corte

Outro caso de quebra de paradigmas é de Rochelle Verlaine Beltramin, que possui três propriedades rurais de pecuária de corte no município de Novo Bandeirantes, no extremo Norte de Mato Grosso, a quase mil quilômetros da capital Cuiabá.

Hoje ela é uma produtora admirada e que se tornou referência na região. Mas, no passado, já enfrentou muita resistência e preconceito de outros fazendeiros que achavam que criação de gado não era coisa de mulher. Muitos desses que a criticaram no início, hoje são admiradores de seu trabalho.

“Tive dificuldades para comprar os imóveis, pois quando os fazendeiros se deparavam com uma mulher na negociação, alguns desistiam da venda ou cobravam preços mais altos”, recorda.

Nos eventos agropecuários, também costumava ser questionada pelos homens porquê estava ali: “Perguntavam se eu era mulher de fazendeiro ou se tinha herdado a propriedade de meu pai. Por muitas vezes respondi que não, que fui eu mesma quem comprei as propriedades. Eu sou a dona do negócio”, respondia.

Em meados dos anos 2000, quando Rochelle decidiu comprar as fazendas, ela tinha acabado de ser mãe e negociava os imóveis entre uma amamentação e outra. “Eu terminava de visitar uma propriedade e corria para casa para dar de mamar ao meu bebê. Depois, eu seguia para visitar outra propriedade e assim suscessivamente”, relata.

Tanto trabalho valeu a pena. Ela conseguiu comprar a última das três fazendas em 2014, e desde então não parou mais, sempre pensando em novas soluções e alternativas para que o negócio prospere ainda mais. “É claro que antes de tomar uma decisão final procuro ouvir especialistas de cada setor. Não tenho essa de querer resolver as coisas de maneira isolada ou centralizada. Acredito que quanto mais gente participando desse processo melhor”, explica Rochelle, que é responsável por toda a parte administrativa das fazendas.

Hoje, entretanto, ela acredita que alguns preconceitos estão sendo superados.“ Sinto que os produtores já me tratam com muito mais respeito, pois, a partir do momento que você começa a dialogar e mostrar que entende do assunto, as diferenças vão sumindo, e fica algo mais natural. Já não se trata de homem e mulher, mas de duas pessoas da área discutindo em pé de igualdade sobre os assuntos do campo”.

Para a fazendeira, quanto mais mulheres protagonistas no campo, melhor para a pecuária. “Nós somos cuidadosas com as coisas que fazemos. Somos detalhistas e dedicadas. O setor só tem a ganhar com a nossa participação cada vez mais efetiva nesses espaços de poder e tomadas de decisão”, afirma.

Fazendas sustentáveis

As propriedades de Rochelle estão inseridas no projeto Conect@gro: conectando conhecimento e boas práticas, do Instituto Centro de Vida (ICV). A iniciativa faz parte do rol de  projetos financiados pelo REM MT e trabalha com a questão da sustentabilidade em 15 fazendas voltadas para a produção de pecuária de corte. Os imóveis são de pequeno e médio porte, entre 300 a 1.500 hectares, e estão localizados na região Norte de Mato Grosso (Portal da Amazônia), em cidades como Alta Floresta, Colíder, Paranaíta e Carlinda.

No Conect@gro o trabalho é focado na gestão das propriedades nos aspectos econômico, social e ambiental. O objetivo é produzir com qualidade, gerar lucro, sem a necessidade de degradar novas áreas para abertura de pastos.

Fonte: www.obomdanoticia.com.br

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